Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Adélia Prado - Uns outros nomes de poesia

Adélia dispõe-se a vasculhar uma cidade abandonada, onde possa encontrar objetos esquecidos em meio à azáfama da vida quotidiana, mas se dá conta do quão baldados são os seus esforços, já que, numa sociedade sem guerra e com custo de vida elevado, ninguém deixa nada para trás, sequer uma simples agulha.

 

Nessa cidadela renegada, em que se dá a busca metafórica da poesia cingida pelos contrafortes do vezo pragmático e materialista, a Lírica, tanto quanto a Verdade e a Justiça, podem resultar inacessíveis ou mesmo mal interpretadas, em face das barreiras da linguagem e da cultura: devemos, por isso mesmo, sonhá-las enroupadas em seus mantos autênticos, não descoradas pela crosta da superficialidade, pelas vãs aparências que nos inculcam as prescrições de filosofias e de crenças insubsistentes.

 

O que nos salva a todos é o amor, essa poderosa e redentora força – ainda que muitos o divisem com os olhos pirrônicos da incredulidade –, haja vista que somente ele se mostra capaz de gerar bençãos e sentenças justas, mesmo quando se enfrenta a dor ou a destruição – e mesmo aí, sob condições adversas e inesperadas, podemos nos deparar com a beleza da Poesia e da Verdade!

 

J.A.R. – H.C.

 

Adélia Prado

(n. 1935)

 

Uns outros nomes de poesia

 

Queria uma cidade abandonada

para achar coisas nas casas, objetos de ferro,

um quadro interessantíssimo na parede,

esquecidos na pressa.

Mas, sem guerra aparente e com a vida tão cara,

quem deixa para trás uma agulha sequer?

Eu acho coisas é no meu sonho,

no rico porão do sonho,

coisas que não terei.

Toda a vida resisti a Platão, a seus ombros largos,

à sua república aleijada, donde exilou os poetas.

Contudo, erros de tradução são ordinários,

eu não sei grego,

eu não comi com ele um saco de sal.

Por isso o que ele disse e o que eu digo

é carne dada às feras,

menos o que sonhamos.

Ninguém mente no sonho,

onde tudo está nu e nós desarmados.

O mito que ele escreveu – quem sabe a contragosto? –

é tal qual o que digo:

na garganta do morto tem um buraco tão grande

como o Vale de Josafá onde seremos julgados.

Não há no mundo poder que nos conteste

quando o discurso é sobre luz e sombra,

crina e focinho orvalhados.

Contra isso as hostes se enfurecem

e os legistas escondem por escusos motivos

a fotografia do suposto suicida.

Ah, mas o amor em que não creem

continua impassível gerando sentenças justas,

gerando bênçãos, amantes,

apesar do morto e seu pescoço arruinado.

 

O agito das crinas ao vento

(Diane Williams: artista canadense)

 

Referência:

 

PRADO, Adélia. Uns outros nomes de poesia. In: __________. Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2006. p. 37-38.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Luis García Montero - A imortalidade

O poeta recusa-se a partilhar dogmas religiosos ou ir ao encontro de certas formas de notoriedade heroica; antes, centra-se em viver de modo autêntico e sem se preocupar com o julgamento dos outros, tampouco no que diz respeito a prestar contas de suas ações, para assim alcançar equilíbrio e prazer em sua vida quotidiana.

 

Em momentos de introspecção e de contemplação, o falante deixa-se avançar sem pressa no tempo, acolhendo os átimos fugazes de luz sobre o fundo brumoso das trevas: a seu ver, a verdadeira imortalidade não reside nas promessas do pós-vida, senão na riqueza das experiências vividas aqui e agora, ou por outra, na capacidade de se sentir emoções genuínas, sem obsediar-se na busca da fama ou dos galardões literários a qualquer custo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Luis García Montero

(n. 1958)

 

La inmortalidad

 

Nunca he tenido dioses

y tampoco sentí la despiadada

voluntad de los héroes.

Durante mucho tiempo estuvo libre

la silla de mi juez

y no esperé juicio

en el que rendir cuentas de mis días.

 

Decidido a vivir, busqué la sombra

capaz de recogerme en los veranos

y la hoguera dispuesta

a llevarse el invierno por delante.

Pasé noches de guardia y de silencio,

no tuve prisa,

dejé cruzar la rueda de los años.

Estaba convencido

de que existir no tiene transcendencia,

porque la luz es siempre fugitiva

sobre la oscuridad,

un resplandor en medio del vacío.

 

Y de pronto en el bosque se encendieron los árboles

de las miradas insistentes,

el mar tuvo labios de arena

igual que las palabras dichas en un rincón,

el viento abrió sus manos

y los hoteles sus habitaciones.

Parecía la tierra más desnuda,

porque la noche fue,

como el vacío,

un resplandor oscuro en medio de la luz.

 

Entonces comprendí que la inmortalidad

puede cobrarse por adelantado.

Una inmortalidad que no reside

en plazas con estatua,

en nubes religiosas

o en la plastificada vanidad literaria,

llena de halagos homicidas

y murmullos de cóctel.

Es otra mi razón. Que no me lea

quien no haya visto nunca conmoverse a la tierra

en medio de un abrazo.

 

La copa de cristal

que pusiste al revés sobre la mesa,

guarda un tiempo de oro detenido.

Me basta con la vida para justificarme.

Y cuando me convoquen a declarar mis actos,

aunque sólo me escuche una silla vacía,

será firme mi voz.

No por lo que la muerte me prometa,

sino por todo aquello que no podrá quitarme.

 

Imortalidade

(Russ Fye: artista norte-americano)

 

A imortalidade

 

Nunca tive deuses

e jamais senti a implacável

vontade dos heróis.

Durante muito tempo esteve vago

o assento do meu sentenciador,

motivo por que não estive à espera de um julgamento

para prestar contas dos meus dias.

 

Decidido a viver, busquei a sombra

capaz de me abrigar nos verões

e a fogueira impetuosa

para poder levar à frente o inverno.

Passei noites em guarda e em silêncio,

não tive pressa,

deixei passar a roda dos anos.

Estava convencido

de que existir não tem transcendência,

porque a luz é sempre fugitiva

sobre a escuridão,

um resplendor no meio do vazio.

 

E de repente, no bosque, iluminaram-se as árvores

dos olhares insistentes,

o mar expôs os seus lábios de areia

tal como as palavras ditas num canto,

o vento abriu as suas mãos

e os hotéis os seus aposentos.

A terra parecia mais nua,

porque a noite se passou,

como o vazio,

num resplendor escuro no meio da luz.

 

Então compreendi que a imortalidade

pode ser cobrada por antecipação.

Uma imortalidade que não reside

em praças com estátuas,

em nuvens religiosas

ou na plastificada vaidade literária,

cheia de lisonjas homicidas

e murmúrios de coquetéis.

É outra a minha razão. Que não me leia

quem nunca tenha visto a terra se mover

no meio de um abraço.

 

A taça de cristal

que puseste emborcada sobre a mesa

mantém represado um tempo áureo.

Basta-me a vida para me justificar.

E quando for intimado a reconhecer os meus atos,

ainda que me escute apenas um assento vazio,

firme será a minha voz.

Não pelo que a morte me prometa,

mas por tudo o que ela não me pode tirar.

 

Referência:

 

MONTERO, Luis García. La inmortalidad. In: __________. Casi cien poemas: antología (1980-1995). Prólogo de José Carlos Mainer. Madrid, ES: Hiperión, 1997. p. 204-206.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Joan Maragall - A vaca cega

A explorar temas como o isolamento, a adaptação às adversidades e a perseverança, este poema de Maragall, ao evocar a imagem melancólica e comovente de uma vaca cega que se aventura sozinha em busca de água, remata por o fazer em conexão com a maldade humana, pois que, em grande parte, a ablepsia do animal se deu em razão de uma pedra que lhe foi atirada por um jovem.

 

O poema culmina com uma imagem merencória da vaca elevando sua enorme cabeça rumo aos céus, num gesto trágico – como que a apiedar-se de sua sina –, e logo o seu vago e perdido olhar pousa sobre a linha do horizonte, regressando à solidão sob o sol abrasador a agitar languidamente a longa cauda, enquanto vacila por “caminhos inesquecíveis”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Joan Maragall

(1860-1911)

 

La vaca cega

 

Topant de cap en una i altra soca,

avançant d’esma pel camí de l’aigua,

se’n ve la vaca tota sola. És cega.

D’un cop de roc llançat amb massa traça,

el vailet va buidar-li un ull, i en l’altre

se li ha posat un tel: la vaca és cega.

Ve a abeurar-se a la font com ans solia,

mes no amb el ferm posat d’altres vegades

ni amb ses companyes, no: ve tota sola.

Ses companyes, pels cingles, per les comes,

pel silenci dels prats i en la ribera,

fan dringar l’esquellot, mentre pasturen

l’herba fresca a l’atzar... Ella cauria.

Topa de morro en l’esmolada pica

i recula afrontada; però torna

i abaixa el cap a l’aigua i beu calmosa.

Beu poc, sens gaire set. Després aixeca

al cel, enorme, l’embanyada testa

amb un gran gesto tràgic; parpelleja

damunt les mortes nines, i se’n torna

orfe de llum, sota del sol que crema,

vacil·lant pels camins inoblidables,

brandant llànguidament la llarga cua.

 

Vaca montanhesa

(James Hollis: pintor inglês)

 

A vaca cega

 

Dando de cara num e noutro toco,

seguindo rotineira em busca d’água,

lá vem tão solitária a vaca. É cega.

Com boa pontaria e uma pedrada,

o moleque vazou-lhe um olho, e ao outro

cobriu uma ferida: a vaca é cega.

Da fonte vem beber, como antes vinha,

mas não com a firmeza de outros tempos

nem com as companheiras: vem sozinha.

Suas colegas, por declives, morros,

no silêncio do prado e na ribeira,

tilintam a sineta, enquanto pastam

a relva fresca ao léu... Ela cairia.

Bate o nariz no afiado bebedouro

e recua, afrontada; mas retorna,

baixa a cabeça n’água e bebe, calma.

Bebe pouco, sem sede. Depois ergue

ao céu, enorme, sua córnea testa

num grande gesto trágico; então pisca

sobre as meninas mortas, e se volta,

órfã de luz embaixo do sol que arde,

palmilhando um caminho inesquecível,

brandindo lânguida uma cauda longa.

 

Referência:

 

MARAGALL, Joan. La vaca cega / A vaca cega. Tradução de Fábio Aristimunho Vargas. In: VARGAS, Fábio Aristimunho (Organização e tradução). Poesia catalã: das origens à guerra civil. São Paulo, SP: Hedra, 2009. Em catalão: p. 85; em português: p. 84.