Adélia dispõe-se a vasculhar
uma cidade abandonada, onde possa encontrar objetos esquecidos em meio à azáfama
da vida quotidiana, mas se dá conta do quão baldados são os seus esforços, já
que, numa sociedade sem guerra e com custo de vida elevado, ninguém deixa nada
para trás, sequer uma simples agulha.
Nessa cidadela
renegada, em que se dá a busca metafórica da poesia cingida pelos contrafortes
do vezo pragmático e materialista, a Lírica, tanto quanto a Verdade e a Justiça,
podem resultar inacessíveis ou mesmo mal interpretadas, em face das barreiras
da linguagem e da cultura: devemos, por isso mesmo, sonhá-las enroupadas em
seus mantos autênticos, não descoradas pela crosta da superficialidade, pelas
vãs aparências que nos inculcam as prescrições de filosofias e de crenças insubsistentes.
O que nos salva a
todos é o amor, essa poderosa e redentora força – ainda que muitos o divisem
com os olhos pirrônicos da incredulidade –, haja vista que somente ele se
mostra capaz de gerar bençãos e sentenças justas, mesmo quando se enfrenta a
dor ou a destruição – e mesmo aí, sob condições adversas e inesperadas, podemos
nos deparar com a beleza da Poesia e da Verdade!
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1935)
Uns outros nomes de
poesia
Queria uma cidade abandonada
para achar coisas nas
casas, objetos de ferro,
um quadro
interessantíssimo na parede,
esquecidos na pressa.
Mas, sem guerra
aparente e com a vida tão cara,
quem deixa para trás
uma agulha sequer?
Eu acho coisas é no
meu sonho,
no rico porão do sonho,
coisas que não terei.
Toda a vida resisti a
Platão, a seus ombros largos,
à sua república
aleijada, donde exilou os poetas.
Contudo, erros de
tradução são ordinários,
eu não sei grego,
eu não comi com ele
um saco de sal.
Por isso o que ele
disse e o que eu digo
é carne dada às feras,
menos o que sonhamos.
Ninguém mente no
sonho,
onde tudo está nu e
nós desarmados.
O mito que ele
escreveu – quem sabe a contragosto? –
é tal qual o que
digo:
na garganta do morto
tem um buraco tão grande
como o Vale de Josafá
onde seremos julgados.
Não há no mundo poder
que nos conteste
quando o discurso é
sobre luz e sombra,
crina e focinho
orvalhados.
Contra isso as hostes
se enfurecem
e os legistas
escondem por escusos motivos
a fotografia do
suposto suicida.
Ah, mas o amor em que
não creem
continua impassível
gerando sentenças justas,
gerando bênçãos,
amantes,
apesar do morto e seu
pescoço arruinado.
O agito das crinas ao vento
(Diane Williams: artista canadense)
Referência:
PRADO, Adélia. Uns
outros nomes de poesia. In: __________. Terra de Santa Cruz. Rio de
Janeiro, RJ: Record, 2006. p. 37-38.
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