Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 22 de março de 2025

Robinson Jeffers - A Beleza das Coisas

A beleza, claro está, é um dos propósitos medulares da poesia: segundo Jefferes, a principal tarefa do poeta é capturar e transmitir a sempre surpreendente beleza do mundo natural, incluindo tanto a “natureza humana”, com seus aspectos intensos, sanguíneos e emocionais, quanto a “natureza não-humana”, em sua imponente realidade.

 

Aos olhos do poeta, estamos apenas parcialmente despertos para os traços perenes da beleza natural, limitados que somos por nossa própria subjetividade e sonhos, ou o que dá no mesmo, capturados por “distrações” passadiças e individuais – como os sentimentos nobres ou sagrados, as ideias complexas, o amor, a lascívia e o desejo –, importantes, é claro, mas secundários em cotejo à conexão mais profunda que deveríamos ter com a natureza, em sua totalidade.

 

J.A.R. – H.C.

 

Robinson Jeffers

(1887-1962)

 

The Beauty of Things

 

To feel and speak the astonishing beauty of things –

earth, stone and water,

Beast, man and woman, sun, moon and stars –

The blood-shot beauty of human nature, its thoughts,

frenzies and passions,

And unhuman nature its towering reality –

For man’s half dream; man, you might say,

is nature dreaming, but rock

And water and sky are constant – to feel

Greatly, and understand greatly, and express greatly,

the natural

Beauty, is the sole business of poetry.

The rest’s diversion: those holy or noble sentiments,

the intricate ideas,

The love, lust, longing: reasons, but not the reason.

 

1951

 

In: “Hunger Field” (1948-1953)

 

Cavalos Pastando IV

(Os Cavalos Vermelhos)

(Franz Marc: pintor alemão)

 

A Beleza das Coisas

 

Sentir e falar sobre a surpreendente beleza das coisas –

terra, pedra e água,

Bicho, homem e mulher, sol, lua e estrelas –

A beleza sanguínea da natureza humana, seus pensamentos,

frenesis e paixões,

A sua realidade proeminente, manifesta na natureza não-humana –

Perante o sonho a meio do homem; o homem, poder-se-ia

dizer, é a natureza a sonhar, mas a rocha,

A água e o céu são perenes – sentir

Profundamente, compreender profundamente e expressar

profundamente a beleza

Da natureza é a única vocação da poesia.

O resto é distração: aqueles sentimentos sagrados ou nobres,

as intricadas ideias,

O amor, a lascívia, o desejo: razões, mas não a razão.

 

1951

 

Em: “Campo da Fome” (1948-1953)

 

Referência:

 

JEFFERS, Robinson. The beauty of things. In: __________. The selected poetry of Robinson Jeffers. Edited by Tim Hunt. Stanford, CA: Stanford University Press, 2001. p. 652.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Pedro Salinas - Presságios: 41

Salinas advoga a ideia de que o amor – esse sol que perdura com sua luz a distância – se renova mediante a reiteração das palavras, as quais, ainda que soem idênticas, revivescem a cada expressão ou proposição, transmitindo vida em profundidade e emoções únicas, fazendo nascer novas estrelas no firmamento da alma.

 

Trata-se, obviamente, de um recordatório de que – a despeito de tudo ser efêmero, precipitando-se na fugacidade dessas palavras e estrelas –, o amor segue como um campo de força que nos conecta ao universo, num coração em uníssono, para além das “línguas dos homens e dos anjos”, a dar continuidade à sempiterna obra da criação.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pedro Salinas

(1891-1951)

 

Presagios

 

41

 

Estas frases de amor que se repiten tanto

no son nunca las mismas.

idéntico sonido tienen todas,

pero una vida anima a cada una,

virgen y sola, si es que la percibes.

Y no te canses nunca

de repetir las palabras iguales:

sentirás la emoción que siente el alma

al ver nacer a la estrella primera

y al mirar que se copia, según la noche avanza,

en otras estrellitas

de distinto brillar y de alma única.

Y así al repetir esta

simple frase de amor se van prendiendo

infinitas estrellas en el pecho:

un mismo sol les presta luz a todas,

 

el sol lejano que vendrá mañana

cuando cesen estrellas y palabras.

 

Sonhe seus sonhos e alcance as estrelas

(Annie B.: ilustradora inglesa)

 

Presságios

 

41

 

Essas frases de amor que se repetem tanto

não são as mesmas nunca.

Soam todas idênticas, contudo

singular vida a cada uma anima,

virgem e só, se podes percebê-la.

E não te canses nunca

de repetir as palavras iguais:

sentirás a emoção que sente a alma

ao ver a estrela que primeiro nasce

e ao vê-la desdobrar-se, conforme a noite avança,

em outras estrelinhas

de distinto brilhar e de alma única.

E ao repetires essa

simples frase de amor se vão prendendo

infinitas estrelas em teu peito:

um mesmo sol empresta luz a todas,

 

o sol distante que amanhã virá

quando cessem estrelas e palavras.

 

Referência:

 

SALINAS, Pedro. Presagios: 41 / Presságios: 41. Tradução de Anderson Braga Horta. In: HORTA, Anderson Braga (Organização, seleção e tradução). Traduzir poesia. Brasília, DF: Thesaurus, 2004. Em espanhol: p. 112; em português: p. 113.

quinta-feira, 20 de março de 2025

João Cabral de Melo Neto - Proust e seu livro

Melo Neto explora a relação simbiótica entre o autor e sua obra, centrando-se na figura do francês Marcel Proust (1871-1922), o criador da monumental série “Em busca do tempo perdido”, em sete tomos: como um marinheiro num oceano de palavras, Proust navega em suas páginas como um protagonista ao encalço de sentido maior para a sua vida, de sua própria missão de escritor, ou antes, de descoberta de sua vocação literária.

 

O conteúdo memorial da obra arrasta-se até o fim, digo melhor, tanto da própria série quanto da existência física do escritor, como se ambas fossem uma só entidade, na qual a conclusão da primeira implicasse – como predica o vate pernambucano – um fecho “suicida” para a segunda: a título de deslinde, tenha em mente o leitor que três dos sete volumes da “Recherche” foram publicados postumamente.

 

J.A.R. – H.C.

 

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

 

Proust e seu livro

 

Decerto o sabia, quem viveu

com a vida e a obra emaranhadas,

que viveu fazendo-as, refazendo-as,

elastecendo-a em tempo e páginas,

 

que vestiu sua obra, por dentro,

percorrendo-a, viajando em seu barco,

decerto viu que um dia acabá-la

era matar-se em livro, suicidá-lo.

 

Em: “Museu de tudo” (1975)

 

Estampa para Proust em seu labor literário

(Autoria desconhecida)

 

Referência:

 

MELO NETO, João Cabral. Proust e seu livro. In: __________. A educação pela pedra e depois. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1997. p. 89.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Marco Antonio Montes de Oca - Sim e Não

O poeta mexicano nos leva a adentrar uma paisagem intimista e reflexiva, na qual a contemplação e o questionamento entrelaçam-se num diálogo dicotômico e intrigante, mediante a personificação da alma e a exploração de emoções contrastantes, as quais pervagam entre o entorno natural e estados mentais de inquietude, de desassossego, provindos, talvez, de uma intuição, um pressentimento ou suspeita que não se pode explicar de modo racional.

 

Em meio a esse clima conflitivo, em que a felicidade e a harmonia de outrora parecem ter-se dissipado, idem o encanto, o primor, a alegria e a vitalidade, o falante recorre, de certa maneira, a formas liminares de autodestruição para aliviar a dor que sente.

 

Mas nada que não possa ser superado pela experiência da beleza, ela que nos costuma surpreender inclusive nos momentos mais difíceis, de vazio ou de isolamento, levando-nos a esquecer da aridez do presente, pois que a sensação de assombro que costuma despertar tem o condão de nos reconectar à vida – na beleza graciosa das flores, no canto mavioso dos pássaros, em algo que, tocando-nos, estimula-nos a encontrar sentidos inauditos, até mesmo em eventos triviais, quiçá convertendo-os em palavras, em poesias!

 

J.A.R. – H.C.

 

Marco Antonio Montes de Oca

(1932-2009)

 

Sí y No

 

Sentada en el filo de nopales

Mi alma se pregunta qué pregunta.

No sé por qué se ensimisma tanto

Ni qué le arde desde tan temprano;

Quizá sea algún murmullo no visible,

O el recuerdo de un lugar

En que los pájaros ríen y las dalias también.

Ya el estío perdió su candor.

Un viento grande me blinda el oído

Y a duras penas

Cruelmente me consuelo

Dándole de palos a los nardos.

Algo sordo me cae desde la cornisa.

Por mera casualidad

Oigo otra vez

El olvidado fragor de la belleza.

 

Cidade dos Anjos

(Daniela Stoykova: artista búlgara)

 

Sim e Não

 

Sentada perto dos nopais (*)

Minh’alma se pergunta sobre o que pergunta.

Não sei por que tanto se ensimesma

Ou o que a faz arder desde tão cedo;

Talvez seja algum murmúrio não visível,

Ou a lembrança de um lugar

Em que riem os pássaros como as dálias.

O verão já perdeu o seu candor.

Um grande vento blinda-me os ouvidos

E a duras penas

Cruelmente me consolo

Sovando os nardos com paus.

Da cornija algo surdo cai sobre mim.

Por mero acaso

Ouço outra vez

O esquecido fragor da beleza.

 

Nota:

 

(*) Nopais: plantas da família das cactáceas, de frutos comestíveis e flores vermelhas, bastante encontradiças no México.

 

Referência:

 

OCA, Marco Antonio Montes de. Sí y no. In: DEBICKI, Andrew P. (Selección, introducción, comentarios y notas). Antología de la poesía mexicana moderna. London, EN: Támesis Books, 1977. p. 267. (Colección ‘Támesis’; Serie B - Textos, XX)

terça-feira, 18 de março de 2025

Wang Wei - Sofrendo de calor

Centrado no crebo tema do entorno natural, tão recorrente na poesia chinesa clássica, pode-se interpretar este poema de Wei, mais extensivamente, como uma metáfora para o sofrimento humano, com o calor abrasador e o desejo de partir para um lugar fresco e vazio a simbolizarem, respectivamente, as dificuldades e desafios que costumeiramente enfrentamos no quotidiano, bem assim a busca pela paz interior, para libertar-nos daquilo que nos suplicia.

 

Entre o taoísmo e o budismo, os versos finais refletem o despertar da mente para a natureza aflitiva de nossos corpos, razão por que deveríamos nos dedicar a sondar as formas conscienciais supremas dos seres ditos iluminados, hábeis a nos levar até o “Portão do Orvalho Suave” – algo como o limiar do Nirvana, para além de qualquer apego doentio aos nossos frágeis sentidos carnais.

 

J.A.R. – H.C.

 

Wang Wei

(692 d.C - 761 d.C.)

 

苦熱

 

赤日滿天地

火雲成山嶽

草木盡焦卷

川澤皆竭涸

輕紈覺衣重

密樹苦陰薄

莞簟不可近

絺綌再三濯

思出宇宙外

曠然在寥廓

長風萬里來

江海蕩煩濁

卻顧身爲患

始知心未覺

忽入甘露門

宛然清涼樂

 

Verão indiano

(Józef Chełmoński: pintor polonês)

 

Sofrendo de calor

 

Um sol em brasa, no céu, na terra,

nuvens de fogo envolvendo as montanhas.

Calcinadas as ervas, murchas as árvores,

secos os rios, enxutos os pântanos.

Como pesa, no corpo, a mais leve de todas as sedas!

As árvores frondosas quase não dão sombra,

ninguém pode descansar em esteiras de vime,

a roupa de linho lavada três vezes ao dia.

Bom seria partir para um mundo longínquo

e livre, habitar num imenso vazio,

deixando-me acariciar por ventos e brisas,

rios e mares expurgando angústias, impurezas.

O nosso corpo, sempre uma fonte de cuidados (*),

por isso, melhor deixar o coração adormecer.

Depois, franquear o Portão do Orvalho Suave

e alcançar serenamente a alegria, a frescura.

 

Nota do Tradutor:

 

(*). Alusão ao Dao Dejing, cap. 13, de Laozi. “Sou infeliz porque tenho corpo. Se, ausência de corpo, nenhuma infelicidade”.

 

Referência:

 

WEI, Wang. 苦熱 / Sofrendo de calor. Tradução de António Graça de Abreu. In: __________. Poemas de Wang Wei. Tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu. Macau, CN: Instituto Cultural de Macau, 1993. Em chinês: p. 124; em português: p. 125. (Colecção ‘Clássicos Chineses’; v. 3)