Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Kevin Hart - Anjo da Escuridão

Evocando uma atmosfera entre o imaginoso e o palpável, o poeta anglo-australiano nos descreve sutis sons noturnos que chegam aos ouvidos do narrador – decerto uma criança à altura dos fatos –, em contraste com a escuridão que a tudo permeia, a albergar tanto o desconhecido que se relaciona ao meio natural, quanto o que cala fundo na alma humana.

 

Os detalhes sensoriais relatados sugerem algo como uma espécie de sonambulismo do falante ou uma atração inconsciente pelo mistério, mesmo que atravessado por alguma inquietude ou perigo latente: os ruídos dos galhos farfalhando e dos juncos a se vergarem, sem a presença de ventos que os justifiquem, acentuam a sensação de uma presença sobrenatural e inexplicável, vale dizer, a do aludido “anjo da escuridão” do título, tal como fantasiado pela criança.

 

J.A.R. – H.C.

 

Kevin Hart

(n. 1954)

 

Dark Angel

 

It was the sound of darkness, mother said,

But still I heard you calling in the night.

It was our old poinciana, straight from hell,

Its full-moon perfume wafting through the house...

 

Or fine mosquitoes, rising from the river

Just coiling in the dark there, down the road;

It was that sound, of water and the trees,

That somehow found a way into my sleep.

 

At night, between poinciana and the river,

Something of me walked round and round and round

Near that black water with its snags and snakes

And long low sounds that keep the grass alive,

 

And you were there as well, a touch away,

Always about to pull the darkness back,

And there were always branches rustling hard

And tall reeds bending. Never any wind.

 

Poinciana Real

(Lisa Rose: pintora norte-americana)

 

Anjo da Escuridão

 

Nada mais que o som da escuridão, dizia mamãe,

Mas mesmo assim te ouvia a chamar na noite.

Era o nosso velho flamboyant, diretamente do inferno,

Seu perfume de lua cheia a se espalhar pela casa.

 

Ou seriam finos mosquitos que surgem do rio e,

Amiúde, enxameiam ali no escuro, ao longo da estrada;

Aquele bulício, de água e de árvores,

De algum modo logrou ingressar em meu sono.

 

À noite, entre o flamboyant e o rio,

Algo de mim vagueava em sucessivos círculos,

Perto daquela água negra com seus troncos e serpes

E sons longos e graves, provedores de vida ao gramado.

 

E tu também lá estavas, a um toque de distância,

Sempre a ponto de fazeres retroceder a escuridão,

E sempre havia galhos que farfalhavam com força

E juncos altos que se vergavam. Sem vento algum.

 

Referência:

 

HART, Kevin. Dark angel. In: ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. Selection, introduction and notes copyright by Neil Astley. 1st publ. Tarset (Northumberland, EN): Bloodaxe Books, 2002. p. 47.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Czesław Miłosz - A ciência do bem e do mal

O poeta nos sugere que o conhecimento do bem e do mal está arraigado em nossa própria existência biológica, digo melhor, em nossas emoções e experiências primordiais – na proximidade de um filho com a sua mãe, nos temores infantis do escuro, na paixão juvenil: Miłosz postula que o bem está ligado à própria vida, enquanto o mal está associado à destruição e aniquilação que o aguarda.

 

As manifestações de beleza, a seus olhos, são como que sinais de um mistério eterno, a desafiar a lógica e a razão, uma verdade que parece sempre estar prestes a ser revelada, num momento de definitiva iluminação. Por isso, a beleza seria tão poderosa, contrastando com a fragilidade do bem: o não-ser, o nada, estende-se ameaçadoramente ao ser, adotando belas formas que simulam a existência, apenas para ocultar sua fealdade intrínseca.

 

Assim, quando as crenças das pessoas acerca do embate do bem contra o mal entram em franco declínio, somente a beleza poderá convocá-las e salvá-las, permitindo-lhes discernir o verdadeiro do falso, servindo-lhes de guia, em meio à incerteza moral, para mantê-las em boa rota no tocante à orientação ética e estética que devem perfilhar com relação às coisas deste mundo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Czesław Miłosz

(1911-2004)

 

Poznanie dobra i zła

 

Poznanie dobra i zła jest nam dane w samym biegu krwi.

W tuleniu się dziecka do matki, bo w niej bezpieczeństwo i ciepło.

W strachach nocnych kiedy byliśmy mali, w lęku przed kłami

zwierząt i ciemnym pokojem,

W młodzieńczych zakochaniach kiedy spełnia się dziecinna lubość.

 

I czyż tak skromne początki obrócimy przeciwko idei?

Czy raczej powiemy, że dobro jest po stronie żywych,

A zło po stronie zagłady, która czyha, żeby nas pożreć?

Tak, dobro jest spokrewnione z bytem, a lustrem zła jest niebyt.

I dobro jest jasność, zło, ciemność, dobro jest wysokość, zło, niskość

Wedle przyrody ciał naszych, naszego języka.

 

Podobnie z pięknem. Istnieć nie ma prawa.

Nie tylko żadnej w nim racji ale argument przeciw.

A jednak jest niewątpliwie i różni się od brzydoty.

 

Ten wrzask ptaków za oknem kiedy witają ranek,

I na podłodze jarzą się pręgi, tęczujące, światła,

Albo horyzont z linią falistą u styku brzoskwiniowego

nieba i ciemnoniebieskich gór –

Czyż to nie było od wieków, tak jak jest dzisiaj, wzywane,

Niby tajemnica, która, jeszcze chwila, a nagle się odsłoni,

I stary artysta myśli, że całe Zycie tylko wprawiał rękę,

Dzień więcej, a wejdzie w sam środek jak do wnętrza kwiatu.

 

I dobro jest słabe, ale piękno silne.

Niebyt szerzy się i spopiela obszary bytu

Strojąc się w barwy i kształty, które udają istnienie.

I nikt by go nie rozpoznał, gdyby nie jego brzydota.

 

Kiedy ludzie przestaną wierzyć, że jest zło i jest dobro,

Tylko piękno przywoła ich do siebie i ocali.

Żeby umieli powiedzieć: to prawdziwe, a to nieprawdziwe.

 

O Bem e o Mal

(Andrej Vystropov: pintor russo)

 

A ciência do bem e do mal

 

A ciência do bem e do mal é dada a nós no pulsar do sangue.

No aconchego do filho junto ã mãe, porque nela há segurança e calor.

Nos pavores noturnos, quando éramos pequenos, no medo

das presas dos animais e do quarto escuro.

Nas paixões da juventude, com suas delícias de criança.

 

E voltaremos inícios tão modestos contra uma ideia?

Ou diremos, antes, que o bem está do lado dos vivos

E o mal, do lado da destruição, que espreita para nos devorar?

Sim, o bem é aparentado com o ser e o não ser é espelho do mal.

E o bem é claridade, o mal. escuridão, o bem é o alto, o mal, o baixo.

Conforme a natureza dos nossos corpos, da nossa linguagem.

 

Assim como o belo. Direito de existir, não possui.

Não apenas lhe falta qualquer razão, mas há também argumento contra.

E no entanto existe, indubitável, e se distingue do feio.

 

Esse vozerio dos pássaros na janela quando saúdam a manhã

E flameja no chão, iridescente, uma faixa de luz,

Ou o horizonte e sua linha ondulada no encontro da cor de pêssego

do céu e do azul escuro das montanhas –

Tudo isso não foi invocado desde séculos, assim como hoje,

Como um segredo que, num instante, de súbito há de se descobrir?

E o velho artista pensa que a vida toda só treinou a mão,

Um dia mais e há de atingir o cerne, como o íntimo da flor.

 

E o bem é fraco, mas o belo, forte.

O não ser se alastra e reduz a cinza os territórios do ser,

Vestindo-se de cores e formas que arremedam a existência.

E ninguém o reconheceria, não fosse sua feiura.

 

Quando as pessoas deixarem de acreditar que existe o mal

e existe o bem,

Só o belo há de chama-las a si e salvá-las.

Para que possam dizer: isto é verdadeiro, isto, inverdade.

 

Referência:

 

MIŁOSZ, Czesław. Poznanie dobra i zła / A ciência do bem e do mal. Tradução de Marcelo Paiva de Souza. In: __________. Para isso fui chamado: poemas. Seleção tradução e introdução de Marcelo Paiva de Souza. Edição bilíngue: polonês x português. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2023. Em polonês: p. 176 e 178; em português: p. 177 e 179.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Manoel de Barros - Agora só espero a despalavra

Em versos que tecem loas aos mistérios e às possibilidades da pré-verbalidade, a um retorno às origens da expressão humana, em persecução a uma imediatez semântica ainda não contaminada pela significação vocabular, o poeta empenha-se em transcender a dimensão simbólica da linguagem, para desfrutar uma experiência direta da realidade, que não interponha seu filtro representacional entre a consciência e a pura vivência.

 

Se Barros agarra-se ao neologismo “despalavra” é porque pervaga por uma presumível desconstrução da linguagem, aspirando a uma ausência de palavras, a uma expressão humana primigênia, pré-verbal, com sons virginais, ainda sem “liga”, tais como os sons naturais – quiçá, no máximo, a abarcar algumas locuções onomatopaicas –, tudo para ir além do já dito em algum momento, do meramente conhecido.

 

Poder-se-ia também tomar o poema, a meu ver, como uma ode à poesia, enquanto forma de experimentação e de descoberta – à guisa de uma ideia inicial, ainda vaga e informe –, com potencial para evocar sensações e emoções, antes mesmo que se converta em algo interpretável pelas vias da racionalidade, transportando significados já agora plasmados em versos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manoel de Barros

(1916-2014)

 

Agora só espero a despalavra

 

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida

para o canto – desde os pássaros.

A palavra sem pronúncia, ágrafa.

Quero o som que ainda não deu liga.

Quero o som gotejante das violas de cocho.

A palavra que tenha um aroma ainda cego.

Até antes do murmúrio.

Que fosse nem um risco de voz.

Que só mostrasse a cintilância dos escuros.

A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma

imagem.

O antesmente verbal: a despalavra mesmo.

 

Homero, o poeta cego

(Caravaggio: pintor italiano)

 

Referência:

 

BARROS, Manoel de. Agora só espero a despalavra. In: __________. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1998. p. 16.