Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

João Manuel Simões - Evocação de D. Quixote

Já tudo se disse sobre a narrativa dos contratempos vivenciados pelo cavaleiro da triste figura, em caudalosa metaliteratura produzida nos mais de quatrocentos anos, desde que essa proverbial obra das letras mundiais veio a lume, pelas mãos do espanhol Miguel de Cervantes.

Ainda assim, persiste ela a excitar e a fomentar emoções e revérberos na mente de seus leitores, os poetas em especial, que nela distinguem a caracterização prototípica de boa parte das misérias humanas, filtrando-as em elocuções eivadas da mais pura poesia, a exemplo do poema desta postagem, cujo autor põe de manifesto todo o seu profundo conhecimento sobre a obra em comento.

J.A.R. – H.C.

João Manuel Simões
(n. 1939)

Evocação de D. Quixote

I

No bricabraque intemporal, fantástico,
pasto das sombras, sujos de bolor
e de teias de aranha, jazem, mudos,
os seguintes objetos que descrevo:
a conspícua bacia do barbeiro
(o elmo de Mambrino) que a ferrugem
rói vorazmente, lepra esverdeada;
um fragmento da mó (que mói tempo?)
do moinho de vento, rude máscara
do nigromante bruto, figadal
inimigo do homem cuja lança
apenas foi brandida em causas justas,
desfazendo os mais negros, vis agravos,
desentortando tortos, sem descanso,
e protegendo órfãos e viúvas;
um sapato em frangalhos do mais fiel
dos escudeiros que jamais viveram
sob o curso do sol ou das estrelas,
que Sancho Pança, ilustre, se chamou;
um pedaço de chita do avental
(ou talvez de outra peça mais secreta)
da nobre Dulcineia del Toboso,
alta e dina princesa de bordel;
dois livros velhos de cavalaria
(vade retro, Satana, vade retro)
salvados da fogueira do abade.

II

Do fidalgo manchego, Cavaleiro
de tão Triste Figura, do mais casto
enamorado que jamais se viu,
nada mais resta além do nome escrito
num velho pergaminho amarelado,
alimento de traças e murídeos
gerados pela noite, clandestinos.
Mas esse nome basta: com luz própria,
(em cada iluminura ardem cores,
florescem chamas, brilham fogos-fátuos)
cintila cruamente nas profundas
do velho bricabraque que desvendo,
os utensílios mágicos dispersos
pelo chão antiquíssimo, noturno.
Das letras rubras sete do seu nome,
heráldicas insígnias que ultrapassam
fulgurações que a noite vai tecendo,
eleva-se, avoluma-se, agiganta-se
um vulto esguio, pálido, translúcido.
É o espectro ou é o corpo do fidalgo
engenhoso, criado na oficina
onírica do artesão Cervantes?

III

Espectro irreal ou corpo verdadeiro,
fidedigna presença de matéria
ou transfiguração fantasmagórica,
ei-lo que surge, assombração na bruma.
E um relincho se escuta na distância
e um galope estremece novamente
as planuras intérminas da Mancha.
Vem luzidio o alazão de sonho,
pégaso de cristal, corcel de espanto,
bucéfalo encantado cujas patas
anseiam novos périplos e trilhas.
Teu Rocinante volta, D. Quixote,
dentro da noite enluarada e fria:
de lança em riste e olhar iluminado,
parte de novo rumo às aventuras!
Se os moinhos de vento já se foram
(são hoje apenas névoa, sem moendas)
os gigantes resistem, traiçoeiros,
escondidos atrás dos seus disfarces,
pérfidos malandrins: não lhes dês tréguas!
Contra eles investe o puro gládio,
qual Rei Artur ou Amadis de Gaula,
paladino do sonho e da ilusão
que enchem de luz, antes da Noite, a Vida!

Dom Quixote
(Alexander Pacheco: artista brasileiro)

Referência:

SIMÕE, João Manuel. Evocação de D. Quixote. In: __________. Sintaxe do silêncio. Curitiba, PR: Editora Lítero-Técnica, 1984. p. 23-25.

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