Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Paul Valéry - Esboço de uma Serpente (excerto)

A serpente, símbolo que, no Gênesis, representa a tentação pelo conhecimento, aparece enrolada na árvore da ciência, toda autoconsciência e imodéstia, a enunciar o seu prodigioso discurso, que nesta ode se declama por meio do eu lírico – ora ora, quem melhor para fazê-lo?!

Alguém poderá arguir que a serpente tem poderes para levar o ser humano a perder-se – Mefistófeles é uma sua variante, está claro! –, mas ela bem pode traduzir, também, os distintos aspectos da natureza humana – afinal, quantas vezes ela troca a pele ao longo da vida?!...

J.A.R. – H.C.

Paul Valéry
(1871-1945)

Ébauche d’un Serpent

(...)

Suave est ce temps de plaisance!
Tremblez, mortels! Je suis bien fort
Quand jamais à ma suffisance,
Je bâille à briser le ressort!
La spendeur de l’azur aiguise
Cette guivre qui me déguise
D’animale simplicité;
Venez à moi, race étourdie!
Je suis debout et dégourdie,
Pareille à la nécessité!

Soleil, soleil!… Faute éclatante!
Toi qui masques la mort, Soleil,
Sous l’azur et l’or d’une tente
Où les fleurs tiennent leur conseil;
Par d’impénétrables délices,
Toi, le plus fier de mes complices,
Et de mes pièges le plus haut,
Tu gardes le coeur de connaître
Que l’univers n’est qu’un défaut
Dans la pureté du Non-être!

Grand Soleil, qui sonnes l’éveil
À l’être, et de feux l’accompagnes,
Toi qui l’enfermes d’un sommeil
Trompeusement peint de campagnes,
Fauteur des fantômes joyeux
Qui rendent sujette des yeux
La présence obscure de l’âme,
Toujours le mensonge m’a plu
Que tu répands sur l’absolu,
Ô roi des ombres fait de flamme!

Verse-moi ta brute chaleur,
Où vient ma paresse glacée
Rêvaser de quelque malheur
Selon ma nature enlacée…
Ce lieu charmant qui vit la chair
Choir et se joindre m’est très cher!
Ma fureur, ici, se fait mûre;
Je la conseille et la recuis,
Je m’écoute, et dans mes circuits,
Ma méditation murmure…

(...)

Serpente
(Veronica Minozzi: pintora italiana)

Esboço de uma Serpente

(...)

Suave é o tempo complacente!
Tremei, mortais! Fico mais forte
Se, nunca suficientemente,
Bocejo até beirar a morte!
O esplendor do azul aguça
Esta hidra que me encapuça
De uma animal simplicidade.
Vinde a mim, ó raça inexperta!
Estou de pé e já desperta,
Semelhante à necessidade!

Sol, sol!... Ilusório arquiteto!
Tu, Sol, que mascaras a morte,
Sob o azul e o ouro de um teto
Onde as flores têm sua corte;
No arco-íris das tuas cores,
Tu, traidor dos traidores,
Dos meus laços o mais perfeito,
Poupas a pena de saber
Que o mundo é apenas um defeito
Ante a pureza do Não-ser!

Grande Sol, tu que a luz descerras
Ao ser, de fogos o iluminas,
Tu, que no sono ameno o encerras,
A falsa tinta das campinas,
Fautor de fantasmas fugazes
Que prendem aos olhos falazes
A presença obscura da alma,
A mentira é minha parceira,
Que espalhas pela terra inteira,
Rei das sombras, feito de flama!

Versa em mim teu fogo fictício,
Onde o meu tédio regelado
Elucubra algum malefício
Segundo o meu ser enlaçado...
Esta área em que a carne clara-
Mente caiu me é muito cara!
Minha fúria, aqui, está madura;
Afago e afogo os seus intuitos:
Eu me escuto e nos meus circuitos
Minha meditação murmura...

(...)

Referência:

VALÉRY, Paul. Ébauche d’un serpent (extrait) / Esboço de uma serpente (excerto). Tradução de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de (Organização e tradução). Paul Valéry: a serpente e o pensar. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Brasiliense, 1984. Em francês: p. 28 e 30; em português: p. 29 e 31.

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